quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Revolução pela Tecnologia da Informação e Comunicação


Qual sua concepção particular de cidadania? Você acredita que sua estrutura psicológica (valores, crenças e atitudes) estão fundadas em uma dada concepção de cidadania ou você acredita que cidadania caracteriza tão somente determinado modo de comportamento, que pode ou não ser adotado?



Pois bem, se você acredita que cidadania caracteriza determinado modo de comportamento, passível de adoção ou não, tentarei expor alguns argumentos que, espero, lhe façam refletir sobre a possibilidade de sua estrutura psicológica estar fundada em uma concepção de cidadania específica, mesmo que você não tenha consciência dela.

Historicamente, certos fenômenos exerceram influência extremamente invasiva sobre a concepção humana de perceber e interagir com o mundo. A força dessa influênciafoi tal que se tornou algo natural, quase imperceptível no dia a dia da maioria das pessoas e necessária para os modos de vida. O desenvolvimento da agricultura, há cerca de 10.000 anos, foi um desses fenômenos: sem ela e o estágio de desenvolvimento atingido, milhões de pessoas não teriam como alimentar-se. Outro exemplo é o da revolução industrial, no século XVIII: sem o advento da mecanização, nossos padrões de vida seriam totalmente diversos.

Desde meados do século passado, mas principalmente a partir da década de 80, um novo fenômeno está mudando a nossa concepção do que seja o mundo e qual a forma adequada de nele vivermos. Esse fenômeno é o da Tecnologia da Informação e Comunicação de natureza digital (TIC).
A maioria das pessoas não tem clara consciência das transformações conceituais por que passamos e acredita que a TIC associa-se tão somente ao fato de possuir um computador, conectar-se a internet e navegar pela web. Mas a realidade não é bem assim.

De acordo com Luciano Floridi, filósofo que se dedica ao estudo do tema, o impacto das inovações tecnológicas derivadas da TIC faz-se notar em quatro áreas distintas que determinam, em larga escala, o modo contemporâneo de vida social: Computação, Automatização de processos e controles, Modelagem associada a realidade virtual e Gerenciamento de informações.

A computação é o componente mais explícito da revolução ora em curso. Compreende o aumento na capacidade de processamento, a massificação do acesso e diminuição no preço final dos computadores. O computador hoje é acessível a praticamente qualquer pessoa (praticamente qualquer pessoa por que, infelizmente, o Brasil está repleto de bolsões de miséria, seja no sentido econômico, seja no sentido intelectual).

A automatização de processos e controles teve inicio no mundo corporativo, como modo de acompanhamento, redução de custos e detecção de falhas no processo produtivo (CNC, CAM, CAD, etc), e expandiu-se rapidamente para todos os âmbitos da vida social, privada ou pública.
Talvez a ideia não seja intuitiva, mas o modelo de Educação a Distância adotado pela Universidade Aberta do Brasil (UAB) insere-se no conceito de automatização de processos e controles: aulas são preparadas para autoestudo, difundidas em plataformas específicas (Moodle, por exemplo), o acompanhamento do aprendizado operado por instrutores virtuais e o aprendizado do aluno verificado por intermédio de tarefas, em sua maioria, virtualmente entregues (existe a necessidade, para controle, de um ou mais exames presenciais).
Noções de tempo e espaço são drasticamente transformadas, pois o aluno gerencia seu tempo e lugar de estudo de acordo com suas necessidades e disponibilidades.
O salto qualitativo no aprendizado é significativo na medida em que o aluno deixa de ser um ator passivo em que, fundamentalmente, recebe o saber, para ser um agente de construção do conhecimento. Daí, por exigir participação ativa (prática culturalmente um tanto quanto desvalorada entre nós), os elevados índices de evasão.

A modelagem associada com a realidade virtual sistematiza a noção de que o mundo humano, embora derivado do mundo físico, é um mundo inventado, construído pela ação coletiva (pelo menos por aqueles que não aceitam a passividade de comportamentos).
De natureza matemática, a modelagem permite a criação de cenários específicos para o mundo real e sua representação digital. A realidade da natureza transforma-se em realidade virtual, com previsão de eventos e cálculo de resultados. Para quem duvida, verifique o procedimento dos Estados Unidos frente a um de seus maiores adversários da atualidade, o Irã. Com representações diplomáticas banidas fisicamente do Irã, os americanos recentemente inauguraram sua representação diplomática virtual para aquele país. Ao governo do Irã restou apenas o protesto e o discurso ideológico.

A últimas das esferas em que a revolução digital acontece situa-se no gerenciamento de informações. Nesta, todo e qualquer informação é classificada, catalogada, armazenada e recuperada de acordo com necessidades específicas. É graças ao seu desenvolvimento e expansão para todos os setores da vida social que a primeira empresa brasileira de semicondutores, a Ceitec, começou a operar comercialmente fabricando o “Chip do Boi”: um chip individualizado que permite a rastreabilidade da vida de um animal, requisito para exportação de carne bovina para os mercados externos. Outra aplicação do gerenciamento de informações é o novo Registo de Identidade Civil que, em 10 anos, identificará digitalmente todos os brasileiros.

As implicações éticas da revolução propiciada pela TIC ainda não são completamente imaginadas ou previstas. Mas, provavelmente, afetarão de modo significativo nossa compreensão do que signifique ser cidadão. A razão é simples: a Tecnologia de Informação e Comunicação reformulou e continua alterando nossa percepção do que seja uma vida digna ao espraiar-se por todos os segmentos da vida social e tornar-nos profundamente dependentes de seus efeitos. Se você duvida, examine sua dependência de seu cartão de crédito, de sua conta bancária ou do transporte que você utiliza diariamente. São faces da vida contemporânea capilarmente apoiadas e dependentes da tecnologia da informação e comunicação digital.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Tecnologia da informação e sociedade


Sob ponto de vista do comportamento ético, direitos autorais devem ser respeitados, plágio não praticado, informações privadas dos cidadãos não furtadas, a liberdade de expressão defendida, a censura inexistir, a corrupção na esfera pública controlada, e daí afora.


Tela de autoria de C. Castro que bem poderia se intitular
 "A procura do caminho"

Entretanto, essa não é, em absoluto, a realidade do dia a dia. Apesar do aparato legal e repressivo com vistas a coibir tais fenômenos, eles se manisfestam em quantidade crescente na medida em que um número maior de pessoas tem acesso aos meios disponíveis para a sua prática, dentre eles a posse de um computador conectado à internet.

As proposições sobre as causas de tais comportamentos são complexas, variando desde a discussão epistemológica sobre determinados conceitos, como, por exemplo, a propriedade privada do conhecimento, ou direitos autorais, até posicionamentos que centram na personalidade individual desviante a razão de tais práticas.

Os argumentos aqui apresentados seguirão em direção alternativa aos acima expostos e partirão dos seguintes pressupostos:

1) concepções morais sobre comportamentos corretos, entendidos como socialmente aceitos e incentivados, e incorretos, ou socialmente reprováveis, são criações humanas dependentes de contextos determinados;

2) por serem criações sociais e que, portanto, independem dos fenômenos puramente naturais, as noções de certo e errado, correto e incorreto, determinam, em larga escala, os comportamentos individuais. Assim, comportamentos julgados ilegais, quanto praticados por elevado número de participantes de uma dada sociedade, devem ter suas causas primeiras buscadas no modelo de organização social em que tais sujeitos se inserem. Em certo sentido, este pressuposto remete à concepção Weberiana de organização social (WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 1994, ed 3ª, v 1);

3) dentre as concepções modernas presentes na organização social, a mais importante parece ser a noção de cidadania, seja ela aceita de forma crítica ou presente de modo não percebido na configuração psicológica dos atores sociais.

E por que a configuração de determinado modelo de cidadania é determinante do comportamento ético em ambientes públicos de participação em massa, como a web? Pelo fato de que, como se demonstrará a seguir, os sujeitos se comportam como atores sociais guiados por configurações psicológicas correlatas de ambientes sociais historicamente determinados (ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994).

No contexto brasileiro, que será o “locus” por excelência dos argumentos aqui desenvolvidos, a concepção de cidadania parece seguir uma linha evolutiva uniforme deste a época imperial até o presente (MENDES, O.J.R. Concepção de cidadania. São Paulo: Dissertação de Mestrado FDUSP, 2010), fato que permite considerações importantes sobre o padrão de comportamento do brasileiro típico.

Angus Stewart (Two Conceptions of Citizenship) defende duas concepções principais de cidadania frente às várias noções associadas ao termo, muitas delas conflitantes. A primeira dessas concepções, a noção formal e legal de cidadania, é a que, por fatores históricos e sociais, serve como protótipo teórico para análise da concepção predominante no Brasil.

Historicamente, a noção formal e legal de cidadania encontra sua origem na Revolução Francesa de 1788 e opõe a noção de cidadão ao de estrangeiro, estabelece a igualdade civil derivada de direitos em relação a e obrigações para com o Estado, além da hegemonia do conceito de soberania nacional, e é, intrinsecamente, uma concepção individualista, forjada na relação sujeito-estado e não na relação sujeito-sujeito que resulte na noção de Estado.

Formal e abstrata, a noção de cidadania é subordinada a noção central de Estado, definido pelo território sobre o qual este exibe jurisdição legal baseado na força, e pelo conjunto de indivíduos sobre os quais vincula suas determinações. Esses conceitos se tornam claros, na história brasileira, quando analisamos, no período Imperial, um dos fundamentos que permitiu a estabilidade política e administrativa enunciados por Paulino José de Souza, Visconde do Uruguai: a responsabilidade central do estado em educar a população sobre o significado de termos como cidadania e bem comum, orientando os sujeitos sobre seus reais interesses e tutelando-os sobre as escolhas adequadas para o bem estar geral (CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 82-89, 1991).

Deste modo, sob uma perspectiva centrada no Estado, a cidadania é concebida como a atribuição legal de um status definido para cada membro da comunidade sob jurisdição legal desse Estado e que compreende um rol de direitos e obrigações. O ponto fraco dessa concepção é que ela não concebe o sujeito como passível de emancipação e autonomia. Pelo contrário, em contrapartida a determinadas obrigações, como, por exemplo, o exercício de uma atividade econômica, o voto e a prestação de serviço militar, o Estado assume extenso elenco de obrigações, vistos como direitos sob a ótica do cidadão, e que passam pela disponibilidade de oportunidades de educação, saúde e bem-estar social (Art. 6º da Constituição de 1988). A noção tradicional de cidadania sob ótica de tripla e indissociável atuação (política, civil e social) transmuta-se em direitos sociais, com o cidadão a reclamar, do Estado, o atendimento de suas necessidades vitais. A consequência é a constituição de sujeitos a-políticos e a-morais (STEWART, op cit), já que essas duas instâncias de atuação social são delegadas aos políticos profissionais e aos programas de governo democraticamente eleitos. Ora, em ambientes em que sujeitos não se constituem como atores aptos a valorar, influenciar e modificar o ambiente social em que vivem, mas se concebem como destinatários privilegiados de bens gerados indistintamente pela sociedade, esperar comportamentos éticos em ambientes coletivos em que recursos estão livremente disponíveis, como o ambiente web, é, antes de tudo, confiar em noções altamente abstratas e subjetivas, como bondade individual (FLORIDI, Luciano. Information Technologies and the Tragedy of the Good Will).

Esse é um problema que, em formato amplo e geral, foi detectado na Reforma Gerencial do Estado Brasileiro de 1995 mas que, posteriormente, foi mitigado no governo Lula. Um de seus objetivos era o de transformar o cidadão de ator social passivo em ator social ativo, capaz de identificar as deficiências econômicas, sociais e políticas em seu ambiente social e reunir esforços no sentido de saná-las. Infelizmente, esse projeto político foi praticamente abandonado em detrimentos de políticas de cunho assistencialista, cuja mérito não cabe aqui analisar mas que, em linhas gerais, apenas se realinham aos ideais do Período Saquarema propostos pelo Visconde de Uruguai. São discursos onde se destaca a preponderância da necessidade de condução externa (heteronomia) das ações de cidadãos incapazes de forjarem a própria autonomia na ação social. O conhecimento da verdade configura-se como privilégio dos governantes, cabendo a estes, sob a orientação centralizada no Estado, o processo de educar e conduzir adequadamente os demais membros da nação. Assim, direitos autorais desrespeitados, plágios em ambientes considerados sérios e competentes ou desrespeito à liberdade de expressão , embora legalmente impedidos, se apresentam como práticas corriqueiras e banais na sociedade brasileira em função da frouxa formação moral e cívica de seus membros e decorrentes de uma concepção anacrônica de cidadania. De acordo com o caso, bens que englobam direitos legalmente definidos são vistos como recursos de livre disposição ao cidadão e que reside em sua discricionariedade a oportunidade de apropriação particular sem a necessidade de contrapartidas específicas, como é o caso dos direitos autorais. Em outras circunstâncias, como a da liberdade de expressão, o cidadão parece não valorá-la como elemento indispensável para o exercício da autonomia de ação social e do adequado comportamento ético.

Obviamente, não se está aqui a defender que uma concepção de cidadania fundada no posicionamento crítico e na autonomia de ação resolva, por si só, problemas éticos e de ilegalidade de comportamentos. Mas representa um dos pilares, ou condição necessária, para constituição de cidadãos morais e socialmente responsáveis.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A importância da cidadania e sua expansão em Agente Moral

Entre 8 e 9 de setembro de 2011 o jornal carioca O Globo publicou três notícias que merecem destaque: “Teatro gastou R$ 2 milhões em obras”, “Corrupção nos Transportes já custou R$ 682 milhões” e “Dilma dá ultimato a governadores: ou é nova CPMF, ou não é nada – Sem opções para custear Saúde, presidente quer maior defesa de criação de tributo”.




A primeira reportagem se refere ao incêndio no teatro Villa-Lobos no Rio de Janeiro que, provavelmente em função de uma pane elétrica, literalmente torrou R$ 2 milhões de reais gastos na reforma. Mais lamentável, este é o segundo incêndio no mesmo teatro e o valor citado foi gasto após o primeiro incêndio.

A segunda notícia aponta para irregularidades, como superfaturamento e pagamento de serviços não realizados, somente no Ministério dos Transportes, que causaram prejuízos de R$ 682 milhões aos cofres públicos.

A terceira notícia realça a pressão que o Palácio do Planalto exerce sobre os governadores para ressuscitar a CPMF com o novo título de CSS (Contribuição Social da Saúde), imposto que, quando de sua existência, foi empregado até para aumentar a poupança para pagamentos dos juros da dívida pública, mas nunca para seu real fundamento: melhorar a saúde pública.


Em São Paulo, o Estado de São Paulo de 28 de novembro de 2011 publicou manchete que segue o mesmo rumo das congêneres cariocas: "Sem controle, custo de obras da Copa já subiu R$ 2 bilhões". A reportagem relata a fraude supostamente patrocinada pelo Ministério das Cidades em Cuiabá, que elevou os preços de um projeto de transportes em R$ 700 milhões.

Ora, o Estado, por definição, é incapaz de produzir renda e subtrai os valores financeiros necessários ao seu funcionamento da sociedade, principalmente pela cobrança de impostos, pagos por todos os cidadãos indistintamente. Entretanto, na presença de corrupção, esse fato asume contornos de extrema gravidade. Configura-se como a transferência  de elevados recursos de extensos setores da esfera privada para a pública e o retorno de parte desses recursos para um grupo restrito de pessoas da esfera privada. O modelo genérico consiste em embutir no preço de obras públicas valores ilegais para fins particulares (corrupção, por definição, significa a utilização de mecanismos públicos para obtenção de vantagens de natureza privada).

O que se pretende aqui destacar é a incompetência administrativa e irresponsabilidade social, além da violência cometida contra o princípio da cidadania, quando os fatos citados são cometidos.

O incêndio do Villa-Lobos remete à falta de planejamento, previsibilidade e prevenção no manejo do bem público. O acidente noticiado foi o segundo, provavelmente pelas mesmas causas, qual seja, problemas elétricos. Apenas para se ter uma ideia de como o descuido no trato da coisa pública no Brasil é alarmante, a reconstrução do World Trade Center em Nova Iorque, após os ataques de 11 de setembro, incluiu pesquisas no desenvolvimento de um novo tipo de cimento, três vezes mais resistente que o anterior, com o objetivo de evitar que eventual novo ataque permita a derrubada do prédio. É difícil acreditar na ocorrência de novo ataque, mas tal fato não é impossível. Por isso os cuidados. Já problemas elétricos, infinitamente mais fáceis de previsão e controle, foram simplesmente dados como improváveis de repetição pelos órgãos de controles cariocas. Ou então, não se tem o mínimo respeito pelo cidadão contribuinte e seu trabalho que origina os impostos obrigatoriamente inclusos nos bens e serviços consumidos.

A corrupção desenfreada que assola o País aponta para destruição do princípio da cidadania. Esta não pode significar apenas uma frase inserida na Constituição: A República Federativa do Brasil tem como fundamento a cidadania (art. 1º, II). Mas, se o cidadão não concebe a si mesmo como importante no contexto social, apto e capaz de influir na construção do País onde vive, então tal princípio é letra morta, a exemplo do que ocorre em ditaduras contemporâneas. E é exatamente esse o sentimento que parece imperar na maioria da classe política brasileira atual: o cidadão é, tão somente, o sujeito capaz de financiar, de modo coercitivo, o elevado padrão de vida que dispõem os políticos e os grupos a eles associados. Apenas como exemplo e amplamente noticiado, o aluguel do apartamento do ex-ministro Palocci era de R$ 15 mil, o condomíno de R$ 4.600 e o IPTU de R$ 2.300. Enquanto isso, metade dos brasileiros (CEM MILHÕES DE PESSOAS) vivem com até um salário mínimo (isso mesmo, ATÉ um salário mínimo e NÃO um salário mínimo) e TODOS pagam os impostos que financiam o Estado brasileiro. Em tal contexto, a corrupção ultrapassa os limites do comportamento eticamente condenável para ser tornar instrumento de violência social.

As tentativas de retorno da CPMF apontam na direção de visões que reduzem o fenômeno da vida a bem de mercado. De atributo indissociável da concepção de cidadania, pois somente o cidadão em adequadas condições de funcionamento de suas funções vitais consegue participar e influir na organização social, a saúde é transmutada em bem a ser garantido financeiramente e de forma explícita por cada sujeito . Ao ser exigida contribuição específica, é desprezado o fato de que, dentre os impostos legalmente pagos, está inclusa a parcela referente à manutenção da saúde pública (art. 34, VII; art. 35, III; art. 167, IV da atual constituição). Além do mais, o art. 194 da Constituição de 1988 textualmente estabelece: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (sem grifo no original). Ora, impor a criação de novo imposto, via governadores, é distorcer a vontade popular representada no voto, já que o programa de governo da atual presidente inclui o “aumento dos recursos públicos” para o setor e não o aumento de recursos privados, disfarçados de públicos, sob a rubrica de novo imposto. Parece faltar, neste caso, posicionamento moralmente responsável com a sociedade pois, se os recursos são escassos, que se combata efetivamente a incompetência administrativa e a corrupção na esfera pública, descritas nas notícias acima citadas, transferindo os recursos resultantes para a área da saúde.

Finalizando, não cabe apenas apontar falhas em comportamentos públicos. É preciso que cada cidadão assuma sua parcela de responsabilidade política, cívica e social, pois, se os fatos chegaram ao ponto em que se encontram, é por que, tradicionalmente e por motivos diversos, renunciamos aos pleno exercício de nossa cidadania.

Não basta votar e esperar resultados: o voto é apenas um elemento do sistema democrático. É preciso mostrar aos eleitos o que se espera deles e demonstrar que a natureza de seus cargos não equivale a empregos bem remunerados. Se não têm condições de desempenhar o papel a que se propuseram, que renunciem. A velha e surrada frase “donos do poder” já não encontra lugar em sociedades democráticas, pois pressupõe súditos e não cidadãos ativos.

Também não é factível esperar que qualquer governo, por melhor estruturado e moralmente correto que seja, resolva todos os problemas econômicos e sociais das sociedades complexas contemporâneas, entre elas o Brasil. Requer-se que o cidadão participe ativamente da construção social e no funcionamento das instituições, reinventando a si mesmo, transformando as deficiências e planejando os caminhos a serem seguidos. Tal fenômeno exige a expansão do conceito de cidadania em agente moral, no qual o sujeito racionalmente conhece, age e muda o perfil da sociedade de modo a aumentar o nível do bem-estar geral.

sábado, 26 de novembro de 2011

Igualdade natural e igualdade social

A publicação dos dados do ENEM 2010 trouxe ao debate, via mídia, diversos aspectos da realidade social brasileira. Um deles foca o método de trabalho e visão de mundo presentes no primeiro colocado no exame, o Colégio de São Bento do Rio de Janeiro, que já obtivera a primeira colocação em edições anteriores do mesmo exame. Somente alunos do sexo masculino, particular e até a opinião, por parte de uma professora da USP, de que os métodos adotados pelo colégio “remetem ao século XIX”, foram alguns dos aspectos do São Bento destacados.

Tela do artista E. Raposeiro


Outro elemento da realidade educacional brasileira bastante explorado é a relação custo versus posicionamento no exame ou, em termos de mercado, a medição da eficiência das escolas.


Entre as escolas no topo das colocações, mensalidades na faixa de R$ 2 mil, cerca de 4 vezes o salário mínimo nacional, não são estranhas (entretanto, a qualidade da educação disponibilizada nessas instituições, seja em termos de preparação técnica, inserção cultural e formação do caráter do estudante praticamente não são abordadas).

O debate é extremamente produtivo não apenas na análise da diversidade de opiniões que desperta, mas também no realce de dois elementos da concepção de cidadania hegemônica no Brasil, tomando por referência o trabalho de Angus Stewart (Two Conceptions of Citizenship in The British Journal of Sociology. Londres, v. 46, n. 1, p. 63-78, mar 1995).

Na concepção centrada na relação sujeito-Estado, derivada da Revolução Francesa, a cidadania corresponde a status formal e abstrato em que direitos e obrigações são atribuídos aos membros da nação. Por não se fundamentar em relações sujeito-sujeito, este modo de cidadania é de natureza individualista e privatista, com a identidade comum aos membros da sociedade fundada no uso de uma mesma língua e cultura, por exemplo, e delimitada territorialmente. Sua característica principal repousa na atribuição de direitos ao cidadão frente ao Estado (saúde, habitação, educação, etc), cabendo a este tão somente exigi-los. Encontra expressão nas proposições “igualdade social” e “cidadania social”.

Entretanto, a cidadania se fundamenta em atuações em três esferas distintas: cidadania política, cidadania civil e cidadania social.

O debate sobre os resultados do ENEM se situam no âmbito da esfera civil, fracamente presente nas análises sobre a realidade brasileira, mas de extrema importância no entendimento da concepção de cidadania sob a qual vivemos.

A cidadania civil se funda na capacidade do sujeito atuar sobre, influir e ser influido pelos ambientes social e econômico em que vive. O locus por excelência para ação é o campo das Instituições, representado nas oportunidades de ação e interação com o outro. Nele, o cidadão prescinde da proteção estatal articulada em direitos, mas requer tão somente regras normativas que delimitem o permitido e o proibido.


A expressão “igualdade natural” simboliza este ambiente (todos são iguais pelo nascimento … mas se diferenciam ao longo da vida por seus próprios méritos). A maioria das escolas que obtiveram as melhores colocações no ENEM se situam nesta esfera.

Muitos argumentos podem ser levantados contra a cidadania civil ou a noção de Instituição. Entretanto, é essa a dimensão considerada globalmente nos rankings que classificam as Universidades mais expressivas do mundo, como, por exemplo, The Times Higher Education University Rankings, um dos mais prestigiados. De modo consciente ou não, é também nesta dimensão que se situam as frequentes greves de professores por melhores salários, embora confundidos com direitos sociais.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Uma primeira aproximação ao conceito de agente moral a partir de cidadania

No estudo sistemático de qualquer disciplina, um dos primeiros passos situa-se na configuração do espaço abrangido por ela.


Configurar um espaço significa apanhar no mundo o assunto de interesse e reconfigurá-lo em termos abstratos, identificando e descrevendo teoricamente os objetos que o povoam. A descrição de tais objetos envolve suas caracterìsticas (ou propriedades) e as possibilidades lógicas de interação.


Tela do artista C. Castro

Assim procedendo, adotamos um método, cuja razão de ser não é outra que articular de forma sistemática o conhecimento e permitir que pessoas com as mais diferentes formações culturais, sociais e religiosas possam debater, em uma área precisamente delimitada, determinados aspectos do mundo.


O significado de "uma área precisamente delimitada" é que. linguisticamente, determinados conceitos básicos e seus respectivos objetos de incidência encontram-se claramente estabelecidos.

Na uniformização da linguagem, os conceitos desempenham papel fundamental. Por expressarem ideias devidamente situadas em seus alcances e sentidos, e, por tornarem possível a expressão do complexo por intermédio de combinações sucessivas, legitimam análises de situações pertinentes ao campo objeto de estudo e permitem julgamentos valorativos, como certo ou errado, verdadeiro ou falso.

Entretanto, é comum encontrar-se debates que adotam caminhos alternativos e sujeitam-se aos choques de opiniões. Os julgamentos valorativos derivam, no mais das vezes, de crenças que não encontram paradigma de comparação a partir do qual possam ser declaradas verdadeiras ou falsas, corretas ou errôneas. Não se baseiam, portanto, em conceitos.


Faltam critérios de uniformização dos argumentos derivados de conceitos previamente definidos e estabelecidos. E o mais grave, é estabelecida uma espécie de confrontação entre os debatedores, do tipo “nós e os outros”, em que “nós” representa os debatedores que julgam corretos e verdadeiros seus pontos de vistas, e “outros” são pessoas teimosas ou com visões erradas que não conseguem apreender intelectualmente a correção dos argumentos que “nós”, os “corretos”, defendemos. Mas, em nenhum dos lados, conceitos que situem e norteiem os argumentos são apresentados.

Exemplo extremamente comum situa-se no debate dos aspectos éticos advindos da facilidade de acesso à web via internet. Discute-se os “desafios éticos no uso das ferramentas disponibilizadas pela internet” sem que uma compreensão adequada do que seja cidadania, conceito fundamental para a vida em sociedade, esteja estabelecida.

Ignora-se, assim, um conceito que funda os alicerces do mundo em sociedade: a noção de cidadania. 


Cidadania significa, em termos amplos, aceitar (e respeitar) que o outro não tenha as mesmas crenças que o "eu", que não pense da mesma forma e que não veja o mundo do mesmo modo. Cidadania é, antes de tudo, uma constituição psicológica do indivíduo fortemente influenciada pelas necessidades da existência e de profunda conotação moral (se situa, portanto, muito além da simples ideia de sujeito de direitos).

Tal formulação aparece em noções históricas de cidadania, que pressupõe a capacidade de liderar e ser liderado, passa pela necessidade de segurança pessoal e alcança a moderna concepção de cidadania enquanto autonomia de viver de acordo com leis gerais estabelecidas pelos próprios sujeitos.

Na contemporaneidade, a web, por dissipar as fronteiras geográficas, mudar a noção de distância física e conectar os habitantes de um mundo globalizado, requer a adequada compreensão das três noções de cidadania historicamente estabelecidas: adaptar-se a pontos de vistas divergentes, proteger e manter segura a identidade pessoal e agir civilizadamente de acordo com direitos e obrigações socialmente estabelecidas. Em tal contexto, a web tem tão somente a possibilidade de potencializar e tornar explícitos comportamentos presentes no ambiente social.

Por outro lado, a noção de comportamento moral como princípio da vida social é tão importante na contemporaneidade que é possível vislumbrar-se a evolução da noção de cidadania para a de “agente moral”. 


Agente moral é o indivíduo imerso no mundo dominado pela tecnologia da informação e comunicação, racionalmente conhecedor das características do ambiente em que vive, capaz de tomar decisões articuladas e fundamentadas e emitir correspondentes comportamentos aptos a influírem, de modo ético, na configuração de seu ambiente social (FLORIDI, Luciano. The Philosophy of Information. Oxford: Oxford University, 2011).

Parece razoável afirmar-se que, no Brasil, existe boa vontade em agir-se de forma ética. Mas falta a capacidade de análise crítica dos próprios comportamentos a partir de uma estrutura conceitual sólida sobre o modo como a filosofia moral está presente no cotidiano de nossas vidas.